terça-feira, 12 de novembro de 2019

Resenha do livro - Na minha pele. (Lázaro Ramos) - Editora Objetiva - Rio de Janeiro - 2017

Recebi esse livro de uma amiga do trabalho alguns dias antes das minhas férias. Ela me emprestou com tanta gentileza que me dispus a ler com atenção em reconhecimento ao carinho demonstrado. Nem precisei me esforçar muito. O livro é tão bom que li em menos de 48 horas! 

Escrevo essa resenha com o objetivo explícito de fazer propaganda escancarada e gratuita, sim! Gostaria que todo mundo lesse essa obra. Se não o mundo, ao menos o Brasil. Se essas letras estimularem pelo menos mais um leitor, que assim recomende o livro a outro, já ficarei satisfeita.

"É muito mimi...vocês vêem racismo em tudo!" - essa frase foi dita a mim por uma pessoa branca, durante uma discussão acalorada em que eu tentava ensinar-lhe a não se referir aos meus antepassados como escravos. Dizia-lhe eu: "não descendo de escravos, mas de africanos escravizados"...Eu ainda não tinha lido o livro do Lázaro e já concordava com ele quanto a essa terminologia. A briga foi feia e eu perdi, como frequentemente perco ao tentar erguer a voz contra a opressão do racismo. Pelo olhar do outro, ou estou exagerando ou criando caso. Via de regra, sou convidada a abaixar a cabeça e a me resignar. As coisas são o que são...

Cresci ouvindo que tudo o que é feio e ruim vem "do lado de lá". Desafortunadamente, eu sou a cara do lado de lá! Puxei para "o outro lado"....nasci "assim"...com esse cabelo ruim e essa cara, esse jeito, esse temperamento .... tudo coisa de preto!



No confronto aberto, sempre me dou mal. Por isso, entre Malcom X e Martin Luther King Jr prefiro a não-violência deste último. Evito polêmicas e detesto bate-boca. Outro ponto em comum identificado com Lázaro. 

Não tive oportunidade de assistir a peça "Do topo da montanha", dirigida e encenada por ele, mas tenho certeza de que foi linda, pois se baseia em um dos discursos mais impressionantes que já foram escritos pelo citado reverendo que é uma referência de ser humano para mim, como também o é para o autor de "Na minha pele".

Voltando ao livro, Lázaro faz uma agradável conversa com o leitor. Conta suas experiências e, usando sua trajetória como pano de fundo, nos faz perceber quão sutil, dissimulado e insidioso o racismo pode ser. 

Coisas que antes eu julgava serem defeitos meus, meramente psicológicos, como a frequente sensação de inadequação, de não-pertencimento e até de menos-valia são reveladas no livro como traços do perverso racismo que vigora em nosso país. Coisas que só quem veste a pele negra entende. 

Termino a leitura com uma vontade imensa de tomar um café com o autor. Ou melhor, um Carmenère chileno. E conversar horas a fio sobre as experiências que eu vivi e ainda vivo, validando e reforçando tudo o que ele coloca em seu livro. 

Concluo que muitas vezes sou racista comigo mesma, quando deixo o olhar desconfiado do outro me ferir. Quando deixo de me posicionar por achar inadequado ou quando me sinto envergonhada de ser quem sou e estar onde estou apenas por que tantos outros como eu, ou até melhores, ainda não conseguiram chegar.

Obrigada, Lázaro Ramos. 
Obrigada por tratar desse assunto com leveza e profundidade. Com amor e respeito. Eu  me via feia e inferior refletida nos olhos do preconceito. Você me ajudou a vestir a minha pele e ficar mais à vontade nela. Que seu livro seja lido em todos os bairros de periferia, escolas públicas e particulares, bancos de praças, filas de banco...viagens de avião, de trem e de barco...e até de "Tomaquêeee"*.

Notas:

Sou negra de pele clara. Embranquecida pela mestiçagem. 
Recentemente escrevi o texto " Em cima do muro mestiço" que trata um pouco dessas reflexões. Foi dias antes de ler o livro do Lázaro e traz as minhas percepções sobre ser mestiça. Acho uma condição bem difícil essa de ser misturada. Não ser nem preta nem branca é bem complicado. Não tenho as facilidades da raça dominante, porque não sou branca o suficiente... (ah, esse cabelo....). Nem sempre meu ativismo como negra é visto como legítimo, porque sou branca demais pra ser preta. O texto está no link: 
*Lázaro Ramos insere essa expressão em seu livro. Não vou explicar para não dar spoiler...para saber o que significa, recomendo que leia o livro.

quinta-feira, 24 de outubro de 2019

Em cima do muro mestiço

Minha cor? Não sei....

"Já me disseram que eu sou branco demais pra ser preto. Já me disseram que eu sou preto demais pra ser branco" (PROJOTA)

Os detectores de melanina sempre funcionam para mim.... aeroporto, banco...shopping de luxo.

Impressão? Mania de perseguição? "mimimi"?... Não é nada disso... Se você nunca passou por esses sutis constrangimentos, você nunca vai entender....

Eu tenho o sangue galego de íbericos ancestrais. Sangue Celta corre em minhas veias, de bruxas e magos de um tempo imemorial que cruzaram o oceano levando seus costumes para Portugal.

Eu tenho sangue preto de negros valentes. Daqueles que corriam descalços vestidos de palha. Fortes e orgulhosos. Guerreiros. Homens e mulheres de extraordinária força física e mental. Sangue que suportou a violência do exílio, do cativeiro e do trabalho forçado.

Aqueles,  escravizaram estes. Em minhas veias, corre um sangue contraditório. Corre o ódio e a arrogância. Corre a resignação e a revolta. Corre o banzo e a saudade.

Tenho no DNA as marcas do chicote. Mas, também, os calos de quem o carregou por tantos anos. Tenho na mão direita ainda a chibata que fere minhas próprias espaldas.

Uma inclinação inata pelas artes, pelos pratos e talheres. Pela fina culinária.
Um amor visceral por correr pelo mato, abraçar as árvores e falar com os animais.
O conhecimento natural do uso das ervas.
A conexão com as energias cósmicas.

Está tudo aqui. No mesmo caldeirão.

Mas, o que sou? Branca? Negra? Indígena? - Uma. E também outra....

Nessa mistura de cores, não dá para ser racista. Nem para um lado, nem para o outro.

Somos elos. Conexões. Viemos para dar as mãos. De um lado e de outro. Viemos para reconciliar. Patrão e empregado. Proprietário e colono. Coronel e escravo. Homem e mulher. Senhora e mucama. Sinhazinha e cunhã....

O brasileiro é uma criação divina para prover o perdão.

Perdão pelas chibatadas...Perdão pelo rancor produzido por elas.
Perdão pelos maus tratos...Perdão pelo ódio que esses maus tratos geraram...

A mistura reconcilia os povos. Casa marabás com mamelucos. Une mouros e ibéricos. Aplaina os orgulhos e suaviza as opiniões.

Somos um país de mestiços! Agora, vamos largar de brigas tolas e fazer uma grande festa, unindo nossas cores, costumes e crenças.

Daqui de cima do muro vislumbro o país mais belo do mundo!


Marabá - Gonçalves Dias

Eu vivo sozinha; ninguém me procura!
Acaso feitura
Não sou de Tupá?
Se algum dentre os homens de mim não se esconde,
— Tu és, me responde,
— Tu és Marabá!

— Meus olhos são garços, são cor das safiras,
— Têm luz das estrelas, têm meigo brilhar;
— Imitam as nuvens de um céu anilado,
— As cores imitam das vagas do mar!

Se algum dos guerreiros não foge a meus passos:
"Teus olhos são garços,
Responde anojado; "mas és Marabá:
"Quero antes uns olhos bem pretos, luzentes,
"Uns olhos fulgentes,
"Bem pretos, retintos, não cor d'anajá!"

— É alvo meu rosto da alvura dos lírios,
— Da cor das areias batidas do mar;
— As aves mais brancas, as conchas mais puras
— Não têm mais alvura, não têm mais brilhar.

Se ainda me escuta meus agros delírios:
"És alva de lírios",
Sorrindo responde; "mas és Marabá:
"Quero antes um rosto de jambo corado,
"Um rosto crestado
"Do sol do deserto, não flor de cajá."

— Meu colo de leve se encurva engraçado,
— Como hástea pendente do cáctus em flor;
— Mimosa, indolente, resvalo no prado,
— Como um soluçado suspiro de amor! —

"Eu amo a estatura flexível, ligeira,
"Qual duma palmeira,
Então me responde; "tu és Marabá:
"Quero antes o colo da ema orgulhosa,
"Que pisa vaidosa,
"Que as flóreas campinas governa, onde está."

— Meus loiros cabelos em ondas se anelam,
— O oiro mais puro não tem seu fulgor;
— As brisas nos bosques de os ver se enamoram,
— De os ver tão formosos como um beija-flor!

Mas eles respondem: "Teus longos cabelos,
"São loiros, são belos,
"Mas são anelados; tu és Marabá:
"Quero antes cabelos, bem lisos, corridos,
"Cabelos compridos,
"Não cor d'oiro fino, nem cor d'anajá."

E as doces palavras que eu tinha cá dentro
A quem nas direi?
O ramo d'acácia na fronte de um homem
Jamais cingirei:

Jamais um guerreiro da minha arazóia
Me desprenderá:
Eu vivo sozinha, chorando mesquinha,
Que sou Marabá!