sexta-feira, 28 de agosto de 2020

Era uma vez... Um baile de debutantes em Viena

Sua irmã maior é bonita, popular e fútil. Procura um marido. Vive cercada de amigas igualmente leves e vazias. Tem um roteiro a seguir. Ir aos bailes. Ver e ser vista. Ser escolhida por um jovem rico e atraente. Casar-se, engordar e ter filhos. Como sua mãe.

Ela é a caçula. Beleza discreta e pouca pompa. Os vestidos mais vistosos são da sua irmã. Ela se veste com decoro e simplicidade. Prefere os livros às aulas de dança. Mesmo assim, sua postura e aura de nobre fazem com que os tules e os cetins ganhem um brilho especial. Ela não passa despercebida.

O baile começa.  Os músicos tocam valsas. Viena é uma cidade festiva.  Servem bebidas e comidas em abundância. Ela nada prova. Quieta, mas segura de si, apenas se faz presente.


Sua irmã e seu séquito de abelhas desfilam pelo salão, atraindo olhares curiosos e cheios de cobiça. Ela, passa incólume e aproveita sua invisibilidade para observar.

Um distinto cavalheiro se aproxima. Ela o nota pela visão periférica. É mais velho, porém  bem apessoado. 

-  Boa noite, jovem dama. Posso aproximar-me de sua senhoria. 

-  Pois não. Boa noite. 

Ela responde educada e reservadamente. Sente seu corpo encolher, como quem se esconde. O pelo da nuca se eriça, como quem fareja o perigo. Ela está em alerta. Não confia em ninguém.  Muito menos em homens...

Ele percebe que a moça é arredia e resolve ir devagar na abordagem. Para impressionar a moça, ele fala da luz e das sombras dos quadros de Rembrandt e recebe dela uma aula de história da arte. 


Ele fala de Chopin, que alguém toca ao piano no fundo do salão, e ela descreve com delicadeza o amor escondido do pianista por uma certa "Elise"* que, segundo ela, permanece escondida dos livros de história, pois madame Sand jamais deixaria que descobrissem essa indiscrição...

O baile segue alegre. As notas parecem tomar formas tridimensionais e se misturar aos vestidos que giram no salão. Os risos, as cores e o frescor da juventude deliciam a moça, que prefere observar a viver aquela ilusão.

Deliciado com o mexerico e intrigado, o homem se perguntava como uma moça poderia ser tão letrada e ao mesmo tempo tão divertida. Que jovem inteligente. Quanta cultura em um corpo tão frágil. Não é como as outras. Não será tão fácil seduzi-la.

Enquanto ele a ouve descrever como aprendeu cultura clássica, diante de uma escultura de Ártemis, à entrada do salão, um jovem duque se aproxima. Ela nota seus olhos já vermelhos de vinho. Ele a convida para dançar. Ela agradece e diz não. O jovem, desconcertado perante tão gentil recusa, sai em busca de outro alvo. O homem, observando a atitude da moça a questiona: 

- A moça não gosta de dançar?  Ou... talvez não saiba...

Ela responde:  - Ah, sim. Gosto muito de dançar. Mas, a conversa está tão agradável que não quero perder o momento. Ademais, aquele jovem está bêbado. E o álcool desperta excessiva ousadia. 

Inebriado pelo que ele entendeu como elogio à sua pessoa, ele se sente à vontade para se aproximar. E lhe oferece uma taça de vinho. Quem sabe despertaria a mulher escondida sob aquele discreto vestido.  Ele sentia a vida que pulsava naquele corpo jovem, mas percebia que ela mantinha seu desejo muito bem guardado.  Seria virgem? Provavelmente.  E caberia a ele, sagaz e experiente, descobrir...

Mas, ela disse não.... 

- Eu não bebo em festas. Prefiro guardar o juízo enquanto tenho controle sobre ele. 

Ele então, a convida para a próxima valsa. E ao tocar sua cintura e sentir seu cheiro de jasmim se imagina no céu. É uma musa. Uma ninfa. Uma deusa. Ela dança com leveza. Flutua pelo salão. Tão linda, tão alegre e tão leve que chega a ofuscar a irmã, que gira majestosamente em seu cetim dourado.

Ele se encanta com a moça. Mas, ela permanece firme em seu espaço.  E não dá ocasião para suas investidas. 

Ele apela então para o velho golpe do passeio no jardim. 

- Está calor aqui. Vamos passear no jardim?

- Meu caro.... pelo que me tomas? Não estrague esse belo momento. A propósito,  sinto que nossa conversa deve terminar aqui. Vejo ali algumas amigas. Vou até lá,  conversar sobre coisas fúteis e voltar ao meu mundo de donzela. A conversa estava boa, e o senhor me parecia inteligente. Mas, vejo que se utiliza dos mesmos ardis que todos os outros. 

- Vejo que a senhorita não é como as outras. Ninguém jamais recusou um convite meu para um passeio no jardim. Será uma inocente caminhada entre as flores, lhe prometo.

- Ao contrário,  meu senhor. Sou exatamente como todas. Apenas aprendi que não preciso seguir o roteiro que vossas senhorias, homens, desenharam. 

- Quando uma moça aceita ir ao jardim, é porque entende que causou este convite. Logo, se vê obrigada a aceitar. Algumas vezes, nada acontecerá além de uma tímida conversa à luz da Lua. Mas, quem não viu julgará que houve algo mais. E a moça acaba presa. Capturada pelo predador. Acredita-se livre para fugir, mas sem forças para escapar. Está presa das línguas maldizentes que se enroscam no seu corpo,  que não é mais seu. 

Outras vezes elas deixam lá no jardim a sua dignidade. E eles se vão, deixando-nos abandonadas, desprezadas, tristes e indignas. Para que, meu senhor? Para que colher as uvas e depois pisá-las na lama? Para que colher flores só para vê-las murchar? Dizem a amar os jardins, mas os destroem com as solas das suas botas. Eu lamento, mas nossa amizade termina aqui.

Ele olha inebriado. E tem ímpetos de beijá-la à força. Nunca antes havia sido assim tão fisgado por uma mulher. Mas, nada fez. Foi invadido por um sentimento de vergonha.  Lembrou-se de quantas moças já enganara. Quantas reputações destruídas por seu egoísmo de macho. O que antes lhe parecia vantagem, agora era motivo de constrangimento.

- Eu aprendi a dizer não. O jardim é tudo que tenho. Não o entregarei a um jardineiro qualquer.  E assim, saiu. Sem dizer mais nada.

Ela se aproximou das amigas e ali se tornou comum, rindo alto e gostosamente dos chistes que lhe contavam. O baile seguia sem ela. E ela não precisava do baile. Outros homens se aproximaram e se afastaram. Elas dispensaram todos. Juntas, formaram um elo de proteção mútua que não permitia entrada de predadores. A cada convite, elas perguntavam-se a si mesmas:

Você quer mesmo dançar essa valsa, ou apenas acha que tem que aceitar o convite?


* Essa amante não consta na biografia de Chopin, mas me ocorreu enquanto escrevia. Sendo Chopin tão romântico, poderia ter mesmo uma amante secreta. Quem sabe proibida ou quem sabe um amor idealizado e impossível. Curiosamente, o nome que me veio a mente foi Elise, que foi musa de outro compositor - Beethoven - (Pour Elise)

As imagens foram copiadas do Google Image. Não achei o autor da pintura do baile, mas o quadro se chama "Flora", de 1635 e representa a esposa de Rembrandt, Saskia, 

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Aceita um café? Adoraria que você participasse da conversa. Expresse aqui sua opinião.