segunda-feira, 10 de novembro de 2014

O menino e o moinho

Uma vez era um moinho.

Ele morava solitário no alto de uma colina. Se ventasse, girava. Se não ventasse, contemplava.

Era uma vez um menino. Ele corria solitário pelos prados daquelas terras. Tinha mãe, tinha pai e tinha irmãos. Mas, não tinha amigos da sua idade. A escola era longe. Só via os coleguinhas na classe. Depois, era só o prado.

Não era só. Sua casa era um mundo de gente. Barulhenta e sempre animada tinha toalha de mesa colorida. Muita comida na mesa. Tudo plantado ali mesmo. Macarronada, só no domingo. Arroz doce de sobremesa também.

A avó tinha sempre um avental verde. A mãe, estava sempre com a barriga molhada, de lavar roupa. A irmã mais velha tinha uns óculos enormes. Vivia estudando. Queria ser professora.

Um irmão ira para a roça com o pai. O outro, consertava coisas. As vezes quebrava coisas, só para ver como funcionavam. Depois, montava tudo novamente. De outro jeito, pois era criativo o rapaz.

O menino não podia subir a colina. Era muito longe. Sua mãe tinha medo. Dos andarilhos que roubam crianças num saco. De animais que andam a espreita de meninos perdidos. Assim ela dizia. E ele acreditava.

Mas, quem já foi menino sabe. A colina mais alta, a cachoeira mais longe, a estrada mais perigosa. É ali que menino quer ir. É corajoso. Sabe se virar. É valente. Com um grito e um pedaço de pau espanta qualquer lobo metido a besta.

Era um sábado. Não tinha escola. Tinha só que ajudar a lavar a louça. Arrumar a pia. Deixar tudo limpinho que a mãe tinha que cuidar do menor. A irmã tinha que estudar matemática. O irmão tinha que colher mandioca e o outro tinha que consertar a lareira, pois logo vai vir o inverno. O  pai.... Bom, o pai tinha que tirar uma soneca, afinal, ninguém é de ferro!

Todo mundo tinha alguma coisa para fazer naquela casa. Não sobrava muito tempo para o menino.

O menino lavou a louça impaciente. Secou os pratos. Correu pra rua. O vento do outono derrubava folhas. E lá longe, o menino ouvia um som diferente. Havia uma sombra que acendia e apagava, sempre ao entardecer.

Aquela tarde vermelha estava propícia a uma aventura. O sol estava forte, embora fosse abril. O céu estava claro e sem nuvens. São três horas da tarde. Todos estão muito ocupados para dar falta do menino.... Era o momento perfeito.

Munido do seu cavalo de pau e do seu badoque, o menino corre pelos prados. Os pés descalços batem em seu bumbum enquanto corre. Como corre esse guri! O vento balança seu cabelo. As vezes, precisa fechar os olhos, por causa da poeira. Você já correu contra o vento? Então sabe como é.

Hoje vou desvendar esse mistério. E ele correu. Correu. E correu. Arfando, parou para respirar e apoiou as mãozinhas sujas nos joelhos. Ufa. Que longe! Ele tinha 9 anos e muita esperteza.

Até agora não vi lobo, nem andarilho, nem ninguém. Onde estão todos? Será que todo mundo tira um cochilo depois do almoço, que nem o meu pai? Minha mãe devia tirar um cochilo também... Se o bebê deixasse. Como chora esse irmãozinho....É muito chato! Só pensa em comer, dormir e chorar.

A casinha branca do vale vai ficando pequenina. A colina, vai ficando grande. Cada vez maior. E no alto dela, algo que parece um castelo. E no alto dele, algo que parece uma torre. E no alto dela.... Um enorme moinho!

Caramba! O que é isso???

Um barulho estranho de molas e engrenagens enferrujadas lhe assusta. O vento uiva. As folhas voam. Uma folha gruda em seu rosto. Ele tenta tirar, irritado. Logo outras colam em sua testa, roupa, braços e pernas.

Parece que o tempo vai virar.....

Ele ouve uma voz..... Muito grave e muito lenta.....

- O que faz aqui, guri? Onde está sua mãe?

Ele procura. Olha para um lado e para o outro.... Não vê ninguém. Corajoso, responde:
- Eu não tenho medo de você. Estou com meu cavalo  e estou armado! (Ninguém precisava saber que a arma era um badoque e o cavalo... bem, você já sabe...)

- Hahahahhaha...... Riu alto a voz. Depois, bem baixinho disse: -Ei, psiu.........e o vento silvou mais forte. - Olhe para cima.

O menino olhou. E eis que o moinho lhe piscou um olho!

- Como assim? Você fala?

- Claro que eu falo! Ora essa, não vê que eu tenho boca?

- Quem é você? Ou melhor.... O que é você?

- Eu! Sou um moinho de vento! Sou muito importante. Sem mim, não tem água nessas redondezas. Mas, não faço nada sozinho... Eu e o vento formamos uma equipe!

- Arre! Esse vento encheu meu olho de cisco e minha cara de folha.

- Sim, meu caro rapaz. Este mesmo vento anuncia a chegada da chuva, seca sua roupa na corda e me ajuda encher essa enorme caixa d'água. Você quer ver como funciona?

O moinho então começou a explicar ao menino como funcionam suas engrenagens, como a rotação do seu eixo faz com que ele encha umas cacimbas enormes que depois são viradas em outro reservatório, assim que chegam a parte mais alta da engrenagem.

O menino, encantado com o engenho, ficou de boca aberta. Queria mostrar ao seu irmão...Aquele que conserta coisas. Precisava voltar correndo para casa e contar para todos.

Ele se despediu do seu novo amigo, prometendo voltar em breve. Mas, o moinho lhe pediu um favor:

 -Você quer ser meu amigo, menino? Eu vivo aqui sozinho. Não tenho com quem conversar. Gostei de você. Quero que volte para eu lhe contar mais histórias. Mas, tem uma condição! Não pode contar para ninguém que conversou comigo. Sou um moinho encantado. Se os adultos souberem do meu segredo, vão querer me destruir.

- Claro que vamos ser amigos! E não vou deixar ninguém lhe destruir! Vou lhe proteger com meu badoque! E mostrou orgulhoso sua arma secreta e seu saquinho de pedras que pegou no rio.

O menino se despediu do seu novo amigo e voltou correndo para casa. Só pensava em contar a novidade. Ele conheceu um moinho falante!... Mas, logo se lembrou que teria que guardar segredo....

- Irmão! Irmão! Você já foi no alto daquela colina? Perguntou ele, escondido da mãe....

- Eu fui sim. Mas, faz muito tempo. Eu era guri assim, que nem tu!

- E então? O que viu lá?

- Ah, mano. Não tem nada lá para você ver. Apenas um moinho chato e velho que nem funciona direito.

- Mas, ele me disse que....

O menino pôs a mão na boca.

O irmão olhou para ele desconfiado. - O que foi que você disse?

- Nada não... E saiu correndo.

Todos os sábados após o almoço o menino fugia para ver o moinho. Eles conversavam, riam e brincavam. O moinho contava histórias de cavaleiros que passaram por ali há muitos e muitos anos. Falava dos temporais que já vira. Raios, relâmpagos, trovões. Ele quase pegou fogo uma vez. E teve que jogar água em si mesmo, porque ali não tem bombeiro para salvá-lo. O vento ajudou, trazendo chuva do mar.

O moinho-herói era um grande amigo do menino. Eram muitas histórias. Sua voz retumbante lhe enchia de alegria. Suas tardes de sábado eram cheias de aventuras. Como ele sempre foi lépido, a família nem desconfiava que ele estivesse tão longe. Ele era hábil na arte de se esconder.

Quando pensavam que estava na cozinha, estava no pomar. Quando não, no galinheiro. Já se escondeu embaixo da cama e no telhado. Sua mãe estava ocupada demais com o bebê chorão para se incomodar com ele. Assim, o menino foi se apegando ao seu novo amigo, sem que ninguém sentisse sua falta em casa.

Em um determinado sábado, o moinho estava triste.

- O que foi, senhor moinho? Por que está triste?

- Por que você vai crescer, menino. E não vai mais se lembrar de mim.

- Nunca! Jamais se abandona um companheiro de batalhas! Seremos sempre amigos e eu vou vir lhe visitar sempre!

Conversaram um pouco mais e logo se despediram.

- Adeus, meu pequeno amigo - Suspirou o moinho.

Essa noite o menino demorou para dormir. Ficou deitado na grama do quintal olhando para o céu. Aquele céu pontilhado que só existe no interior. Tentou contar estrelas. Mas, sua avó disse que aponta para as estrelas fica cm verruga no nariz....Adormeceu... E sonhou...

Ele era um jovem cavaleiro e seu cavalo era o mais bonito da vila. Era um herói e todos lhe respeitavam. Mas, uma notícia terrível chegou. Os inimigos iriam invadir a vila, para roubar o moinho. Estava faltando água no vilarejo vizinho. Eles precisavam da força do moinho para salvá-los.

Intrépido, o menino montou seu cavalo, saiu em defesa do seu amigo....e caiu da cama!

O cheiro de café fresco lhe desperta. É domingo. Todo mundo já levantou. E...quem sentar na mesa por último é mulher do padre..... Correndo, se juntou aos seus irmãos. Ninguém riu da sua brincadeira. Eram ou grandes demais ou pequenos de mais para entender...

Ele comeu o pão assado no forno a lenha. Ouviu o choro do irmão menor. Escutou a irmã declamando poesia - o pai adorava quando ela fazia isso. Em seguida, cada um foi para seus afazeres.

A lareira estava quase pronta; a roupa já estava quase seca no varal; a roça limpa. Tudo como sempre foi. Tudo normal para um domingo de manhã....

O pai chama o menino. Todos estão na sala. É uma reunião solene.

Meu filho. Temos uma coisa muito importante para lhe dizer. O padre conseguiu uma vaga para você em uma escola muito boa, lá da capital. É muito longe, por isso, você vai para lá hoje mesmo. O padre já vem lhe buscar. Vai ter que morar lá. Não vamos nos ver muito, porque é longe e não temos muito dinheiro.

Vai ser bom para você, acredite. A mãe, segurava o choro. A irmã, enciumada, chorava a cântaros. Ela queria ir, mas internato naquela época era só para meninos. Menina de família estudava em casa (quando estudava).

Os irmãos, nunca gostaram de estudar mesmo...Mas, ficaram tristes. Todos ficariam com saudades. Mas, o menino era muito esperto. Merecia uma chance. Ia ser o único da família a virar doutor!

- Pai, posso te pedir uma coisa?
- Pode, filho.
- Deixa eu ir me despedir do meu amigo....
- Que amigo?
- O moinho de vento. Ele pediu para ser meu amigo - O pai sorriu.
- Ele "lhe pediu"???? Que bobagem menino, moinhos de vento não falam!

- Esse fala, pai. Ele falou comigo. Pediu para guardar segredo. Mas, agora que vou embora, não posso sair sem me despedir do meu amigo.

O pai, que já foi menino, entendeu o sofrimento dele.

- Está bem. Mas, vamos juntos. Quero ver esse moinho falar comigo.

Quando chegaram no alto da colina. Quase não ventava. As pás do moinho moviam-se preguiçosamente. Nem giravam. Só se mexiam, e voltavam logo ao ponto de partida. Um silêncio triste enchia a tarde.

O pai tentou convencer o menino: - Está vendo! É só um moinho velho. Ele não fala. Vamos voltar para casa.

- Não! Só um minuto.

O menino ficou na pontinha dos pés, para tentar tocar a pá que estava mais perto dele. E disse baixinho: - Adeus, meu bom amigo. Um dia eu volto para lhe ver.

O moinho fechou os olhos e fez silêncio. E o menino se foi.

Os anos passaram. Inverno, verão, outono, primavera. Veio a chuva de granizo, veio a ventania. Veio o sol forte, veio o temporal.

O moinho, triste, já não falava com ninguém. Aos poucos, suas pás foram se quebrando, e a engrenagem não funcionava mais.

Ninguém mais precisava de moinhos, pois o progresso chegou e com ele, outras formas de bombear água.

Os pais do menino morreram. A irmã se casou e mudou-se para outra cidade. Os irmãos, também se casaram. Todos se espalharam pelo mundo.

O menino, estudou com afinco. Mas, nunca esqueceu do seu amigo. Com o tempo, ficou convencido de que seu pai tinha razão. Moinhos não falam...

Ele se formou. Virou doutor. Engenheiro, para ser mais preciso. Especializou-se em mecanismos de bombeio de água. Aprendeu novas técnicas. Viajou pelo mundo.

Um dia, rico, voltou para sua terra. Não era mais a mesma terra.

No lugar dos prados, muitas casas, A água chegava por uns canos. E a colina, que parecia tão alta, era agora apenas um morro. Estranho como as coisas parecem diminuir, enquanto a gente cresce.

Inexplicavelmente, ninguém comprou a colina. Era quase o único ponto verde em toda aquela redondeza.

O doutor engenheiro sentiu seu coração de menino voltar a pulsar. Sem entender porque, ele correu. E correu. E correu. E ofegante, chegou ao alto do morro.

Lá, ele encontrou uma paisagem desolada. A água parada, com muito lodo. As caçambas quebradas. E o moinho que ainda tentava fazer força para girar seu eixo, sem sucesso.

O barulho de engrenagens enferrujadas lhe pareceu familiar....Ele olhou para o velho moinho, e teve a impressão de que o moinho olhava para ele.

Não pensou nem meia vez. Comprou todo o terreno e se pôs a reconstruir o seu castelo. Todos pensavam que ele era louco. Afinal, quem precisa de um moinho nos dias de hoje???

Pois ele fez, e ao final do trabalho, pôs seu engenho para funcionar. O vento sorriu e jogou folhas em seu rosto. As pás começaram a girar, primeiro lentamente, como se não se lembrassem mais do movimento. Depois, vigorosamente. E as caçambas subiam, viravam e desciam. Chuá, chuá, chuá...
Era a água limpa enchendo o reservatório.

Aquela água, abastecia sua casa e regava sua horta.

Educado, bem apessoado e com uma bela casa, logo o menino-engenheiro achou noiva. E casou, e teve um menino......

- Papai, posso te falar uma coisa?

- Claro meu filho.

- Ontem o moinho me contou uma história...

- Que bobagem, menino. Moinhos não falam! - Disse o pai enquanto olhava para sua esposa, que já estava desconfiada do excesso de imaginação do seu filho.

Abraçando o menino, levou-o para fora e disse - Meu filho, guarde esse segredo: O maior dom de uma criança é sua imaginação. Dê asas a ela e vá correndo brincar com seu amigo! Mas, não conte para ninguém, que adulto não entende dessas coisas de ser criança.

O pai olhou para cima e piscou o olho. O moinho, agradecido, piscou de volta. E do cantinho pareceu sair algo... Será uma lágrima?

Claro que não! Que bobagem! Moinhos não choram!