Estou com um computador e uma xícara de café diante de mim.
Eu me preparo para escrever mais um release
de aventuras. Hábito adquirido sob a influência de amigos que como eu, gostam
de aproveitar a natureza nos fins de semana e depois contar para todo mundo o
que fizeram.
Pois, meus caros. Hoje não escrevo para mim. Dedico este release a Dona Maria, a marisqueira. Enquanto tomo meu café, ela deve estar escovando mariscos ou contando os vinténs recebidos com a venda de hoje, caso tenha achado algum.
...
Soube do evento da equipe D’Aventura (www.daventura.com.br) pelo facebook. Um treino de remo pelo Joanes. Conhecendo o
grupo como conheço, topei na hora. Sabia que ia ser bem organizado, seguro e
divertido. Eu estava com saudades, pois fazia tempo que não remava.
O rio calmo e com pouca correnteza é perfeito para essa
atividade. As margens belíssimas e a companhia de gente bonita e de alto astral
era tudo o que eu queria para meu derradeiro domingo de férias.
O Joanes é hoje um rio poluído, mas tem muita história
bonita para contar. Em seu leito jazem corpos de escravos rebeldes e páginas
apagadas da História do Brasil. Suas águas já produziram muito peixe e muito
marisco. Já deram sustento a muita gente, como a Dona Maria e também já
ensinaram muitos aventureiros a remar.
Porem, há trechos em que a superfície vira uma fina camada
de fezes... É preciso remar de boca bem fechada e estar com a imunidade em dia
para não contrair uma doença qualquer. O fundo, lodoso como convém a um mangue,
tem muito óleo e esgoto. Contudo, as margens continuam lindas e a paisagem é
maravilhosa.
Não era corrida. Não valia medalha e não tinha competição.
Mas, mesmo assim, tive aquele friozinho na barriga de sempre. Como vai ser?
Foi sensacional! Fechamos a primeira parte do treino junto
com o primeiro pelotão. Foram cerca de 4 km do Condomínio Costa dos Coqueiros
ate a foz, em Buraquinho. Fiquei muito orgulhosa do meu parceiro de aventuras,
que acabara de aprender a fazer o leme ali mesmo, após apenas dois ou três
minutos de teoria dados por mim em casa e reforçados por Luciana Freitas, na
hora da largada.
Na chegada a foz, um salva-vidas valentão surgiu na beira da
praia armado com um apito. Queria saber por que alguns colegas estavam sem
coletes. E toma de apito. Piiii piiii. Olha o colete!!! Tem que colocar o
colete!!! Parecia até que era da organização do evento, de tão agitado que
estava.
O salva-vidas estava certo. Embora estivéssemos em águas
calmas e rasas, o colete é equipamento obrigatório em qualquer esporte de
aventura na água. Eu bem sei, por que já precisei muito dele. E obviamente,
estava muito bem vestida no meu.
Uma pausa para o gatorade
na foz e mais uma lição de cidadania da equipe D’Aventura. Nenhum copo jogado
no chão! Todos recolhidos para descarte. Nenhum resíduo deixado na praia.
Bonito de se ver!!! Lição para outros eventos desportivos que deixam a cidade
um lixo!
Mais um pouquinho de prosa e decisões. Quem vai voltar? Quem
fica? Quem rema? Quem faz o leme?
Conversa vai, conversa vem, e meu parceiro de aventuras
desiste. Os braços estão ótimos, mas as pernas, muito compridas para este tipo
de caiaque, não aguentam. Prometi massagem. Disse que a volta seria mais fácil,
porque a correnteza ajudaria, pedi, pedi, pedi... tudo em vão. Estava decidido.
Achei melhor não teimar. Mas, desistir não estava nos meus planos!
Eu estava superconfiante com a performance do primeiro
trecho. Chegar junto com Luciana, Arnaldo e Geraldo. Todo mundo treinado para
competições fortes, foi muito motivador. No entanto, a volta não foi assim tão
fácil. Acabou sendo um desafio para mim.
Na confusão de rearrumar as duplas, terminei por remar com
Milena. Uma pessoa muito simpática, bonita, agradável... e sem experiência alguma com remo!
Eu, por meu lado, até que não remo mal, mas não sei fazer
leme. Tive uma única aula com Luciana e Gabi lá em mil novecentos e bolinhas...
Sei a teoria e posso até explicar, mas, na prática... Éramos duas pessoas
inexperientes a remar... Milena e eu.
O barco ia fazendo um Z beeeem grande. Todo mundo já no meio
do circuito e eu lá... puxa para a esquerda, puxa para a direita e nada.
Estávamos indo para a margem. Milena, muito paciente, perguntava se podia
ajudar. Não podia muito. A responsabilidade de manter o barco no curso é do
leme, mesmo. E esse leme estava totalmente desorientado. Fiz muita força, mas
não desisti. Estava determinada a chegar junto com o restante da equipe ao
final do percurso, sem ter que pedir reboque.
Mais ou menos na metade do caminho, passamos pelos pescadores.
Foi quando conheci Dona Maria, a marisqueira.
Primeiro, avistamos dois homens. Mais atrás, havia uma
senhora sozinha. Com a minha pouca habilidade, acabei passando pelo meio, onde
estavam as redes. Não se deve fazer isso, pois pode atrapalhar o trabalho
deles. O certo é passar por fora das redes, em silêncio e devagar. Como já
estava dentro e não conseguia acertar o barco, passei remando bem devagar para
não revolver muito a água. Pedindo perdão baixinho e tentando não atrapalhar.
Os dois marisqueiros nadavam alegres perto das redes. Riam e
se divertiam. Quando nos viram, fizeram algumas piadinhas de mau gosto: “Eh vida de rico! Vida de rico! Por que é que
este mundo num acaba de uma vez, meu Deus!”.
Ia cumprimenta-los, mas fiquei com vergonha. Vergonha do que
disseram, afinal não sou rica, mas de fato, sob o ponto de vista deles, sou quase
de outro mundo. Vergonha por não estar remando direito e por talvez, atrapalhar
a pesca do dia.
Devagarinho, consegui, com ajuda da Milena, colocar o
caiaque em uma posição melhor. Foi quando passamos pela senhora. A Marisqueira.
Ela nos observava de longe. Eu disse: “Bom dia, senhora”. Ela me sorriu um
sorriso sem dentes. Seus olhos brilhavam. Foi tão bonito, que me emocionei. Ela
parecia admirada com a gente. Não agredida como aqueles homens. Mas, orgulhosa.
Ela então disse: “Mulher tem que ser assim. Retada mesmo!”.
Quase choro. Eu disse a ela: “Deus lhe abençoe, senhora”. E
segui adiante. Gritando satisfeita. - É isso
mesmo, vamos jogar duro, Milena!
Eu sabia que retada
era ela. Aquela mulher já idosa. Dentro d’água, não para se divertir, como eu.
Mas, para tentar pescar o pouquinho de marisco que ainda resta nessas águas.
Aquela mulher valente. Imagino que ela tenha tido marido, e filhos e netos. E
imagino o quando deve ser difícil ser marisqueira em um rio que morre mais a
cada dia.
Eu não perguntei seu nome. Mas, decidi chamá-la de Maria.
Ela será sempre a Dona Maria, a Marisqueira. Que me chamou de retada sem saber que ela é que merecia
todos os elogios.
Foi por ela que escrevi este release. Queria que todo mundo
conhecesse a dona Maria Marisqueira. Por ela, eu gostaria que esse rio fosse
limpo. Que todos os usuários respeitassem a rede. A começar por mim. Agora que
aprendi a fazer o leme, não passo mais onde tem rede. Tratarei de apontar meu
barco no rumo certo.
Por ela, eu gostaria que os moradores de Vilas do Atlântico
não deixassem o rio morrer. Que quando fossem passear de caiaque ou de barco,
passassem longe das redes. Que evitassem
usar barco a motor e jetski onde
houver marisqueiros.
Vocês não tem noção de como a vida deles é dura. O Sr
marisqueiro tem toda a razão. Quem sou eu para ficar ali passeando no meio de
suas redes enquanto ele trabalha? O que estou fazendo para tornar o domingo
dele um pouquinho melhor?
Após sair da área dos marisqueiros, conseguimos nos aprumar.
Mesmo não avançando muito, conseguimos colocar o barco no rumo certo. Inspiradas
por dona Maria, chegamos ao final do treino não muito depois dos demais
companheiros e sempre seguidos de perto por um caiaque da equipe de apoio.
É bom salientar que em nenhum momento, mesmo quando ficamos
para trás, eles deixaram de tomar conta da gente. Eu vi o Gaia voltar para
ficar perto de nós, quando eu estava com dificuldades para acertar o barco. Perguntou
se estávamos bem. Se eu estava cansada. E por todo o treino observou não só o
meu, mas todos os caiaques, sempre preocupado com todo mundo.
O evento foi um sucesso. Espero que aconteça mais vezes e
que seja bem divulgado. Espero que de alguma forma, a gente também consiga
trazer algum benefício para esta região. Quem sabe influenciando o prefeito a
cuidar do rio? Quem sabe?
Dona Maria, desejo que a senhora pesque muitos mariscos. Que
seja feliz e continue sendo “retada”
e ensinando suas filhas e netas a terem sua energia. Quisera eu tivesse metade
da sua fibra!
D’Aventura – muito obrigada por mais um domingo maravilhoso.
Estou na fila para o próximo encontro!
Para saber mais sobre o Rio Joanes:
“O rio Joanes nasce no
município de São Francisco do Conde, localizado no recôncavo da Bahia, e
desemboca na praia de Buraquinho, no município de Lauro de Freitas. Os
municípios que compõem a bacia hidrográfica do rio Joanes são: Lauro de
Freitas, Camaçari, Simões Filho, São Sebastião do Passé, São Francisco do
Conde, Candeias, Salvador e Dias d’Ávila. Com a área de aproximadamente 755
Km², o rio Joanes limita-se com a bacia do rio Jacuípe, as bacias da área
urbana de Salvador, e a sudeste o limite da bacia é definido pelo oceano
Atlântico.”
Fonte: http://www.jornaldamidia.com.br/noticias/2005/02/27/Bahia/Ato_no_Rio_Joanes_lembra_massacre.shtml
“Combate dos negros
muçulmanos, ocorrido em 28 de fevereiro de 1814, um dos mais importantes
movimentos que precederam a Revolta dos Malês (25 de janeiro de 1835).
Cercados pelas
cavalaria do Governo e da Milícia da Casa da Torre de Gárcia D'ávila, depois de
destruir as "armações de baleias" em toda a orla de Salvador e matar
14 homens, os malês em fuga para o Recôncavo travaram o Combate do Rio Joanes.
50 negros muçulmanos morreram no cerco, centenas ficaram feridos, se enforcaram
nas árvores ou se afogaram no rio. Outros seis foram condenados à morte,
enforcados e tiveram a cabeça decepada.
A rebelião foi
controlada e a história esquecida. Um dos poucos relatos está no livro
'Insurreição de Escravos', do professor e jornalista gaúcho Décio Freitas.”
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