sexta-feira, 28 de agosto de 2020

Era uma vez... Um baile de debutantes em Viena

Sua irmã maior é bonita, popular e fútil. Procura um marido. Vive cercada de amigas igualmente leves e vazias. Tem um roteiro a seguir. Ir aos bailes. Ver e ser vista. Ser escolhida por um jovem rico e atraente. Casar-se, engordar e ter filhos. Como sua mãe.

Ela é a caçula. Beleza discreta e pouca pompa. Os vestidos mais vistosos são da sua irmã. Ela se veste com decoro e simplicidade. Prefere os livros às aulas de dança. Mesmo assim, sua postura e aura de nobre fazem com que os tules e os cetins ganhem um brilho especial. Ela não passa despercebida.

O baile começa.  Os músicos tocam valsas. Viena é uma cidade festiva.  Servem bebidas e comidas em abundância. Ela nada prova. Quieta, mas segura de si, apenas se faz presente.


Sua irmã e seu séquito de abelhas desfilam pelo salão, atraindo olhares curiosos e cheios de cobiça. Ela, passa incólume e aproveita sua invisibilidade para observar.

Um distinto cavalheiro se aproxima. Ela o nota pela visão periférica. É mais velho, porém  bem apessoado. 

-  Boa noite, jovem dama. Posso aproximar-me de sua senhoria. 

-  Pois não. Boa noite. 

Ela responde educada e reservadamente. Sente seu corpo encolher, como quem se esconde. O pelo da nuca se eriça, como quem fareja o perigo. Ela está em alerta. Não confia em ninguém.  Muito menos em homens...

Ele percebe que a moça é arredia e resolve ir devagar na abordagem. Para impressionar a moça, ele fala da luz e das sombras dos quadros de Rembrandt e recebe dela uma aula de história da arte. 


Ele fala de Chopin, que alguém toca ao piano no fundo do salão, e ela descreve com delicadeza o amor escondido do pianista por uma certa "Elise"* que, segundo ela, permanece escondida dos livros de história, pois madame Sand jamais deixaria que descobrissem essa indiscrição...

O baile segue alegre. As notas parecem tomar formas tridimensionais e se misturar aos vestidos que giram no salão. Os risos, as cores e o frescor da juventude deliciam a moça, que prefere observar a viver aquela ilusão.

Deliciado com o mexerico e intrigado, o homem se perguntava como uma moça poderia ser tão letrada e ao mesmo tempo tão divertida. Que jovem inteligente. Quanta cultura em um corpo tão frágil. Não é como as outras. Não será tão fácil seduzi-la.

Enquanto ele a ouve descrever como aprendeu cultura clássica, diante de uma escultura de Ártemis, à entrada do salão, um jovem duque se aproxima. Ela nota seus olhos já vermelhos de vinho. Ele a convida para dançar. Ela agradece e diz não. O jovem, desconcertado perante tão gentil recusa, sai em busca de outro alvo. O homem, observando a atitude da moça a questiona: 

- A moça não gosta de dançar?  Ou... talvez não saiba...

Ela responde:  - Ah, sim. Gosto muito de dançar. Mas, a conversa está tão agradável que não quero perder o momento. Ademais, aquele jovem está bêbado. E o álcool desperta excessiva ousadia. 

Inebriado pelo que ele entendeu como elogio à sua pessoa, ele se sente à vontade para se aproximar. E lhe oferece uma taça de vinho. Quem sabe despertaria a mulher escondida sob aquele discreto vestido.  Ele sentia a vida que pulsava naquele corpo jovem, mas percebia que ela mantinha seu desejo muito bem guardado.  Seria virgem? Provavelmente.  E caberia a ele, sagaz e experiente, descobrir...

Mas, ela disse não.... 

- Eu não bebo em festas. Prefiro guardar o juízo enquanto tenho controle sobre ele. 

Ele então, a convida para a próxima valsa. E ao tocar sua cintura e sentir seu cheiro de jasmim se imagina no céu. É uma musa. Uma ninfa. Uma deusa. Ela dança com leveza. Flutua pelo salão. Tão linda, tão alegre e tão leve que chega a ofuscar a irmã, que gira majestosamente em seu cetim dourado.

Ele se encanta com a moça. Mas, ela permanece firme em seu espaço.  E não dá ocasião para suas investidas. 

Ele apela então para o velho golpe do passeio no jardim. 

- Está calor aqui. Vamos passear no jardim?

- Meu caro.... pelo que me tomas? Não estrague esse belo momento. A propósito,  sinto que nossa conversa deve terminar aqui. Vejo ali algumas amigas. Vou até lá,  conversar sobre coisas fúteis e voltar ao meu mundo de donzela. A conversa estava boa, e o senhor me parecia inteligente. Mas, vejo que se utiliza dos mesmos ardis que todos os outros. 

- Vejo que a senhorita não é como as outras. Ninguém jamais recusou um convite meu para um passeio no jardim. Será uma inocente caminhada entre as flores, lhe prometo.

- Ao contrário,  meu senhor. Sou exatamente como todas. Apenas aprendi que não preciso seguir o roteiro que vossas senhorias, homens, desenharam. 

- Quando uma moça aceita ir ao jardim, é porque entende que causou este convite. Logo, se vê obrigada a aceitar. Algumas vezes, nada acontecerá além de uma tímida conversa à luz da Lua. Mas, quem não viu julgará que houve algo mais. E a moça acaba presa. Capturada pelo predador. Acredita-se livre para fugir, mas sem forças para escapar. Está presa das línguas maldizentes que se enroscam no seu corpo,  que não é mais seu. 

Outras vezes elas deixam lá no jardim a sua dignidade. E eles se vão, deixando-nos abandonadas, desprezadas, tristes e indignas. Para que, meu senhor? Para que colher as uvas e depois pisá-las na lama? Para que colher flores só para vê-las murchar? Dizem a amar os jardins, mas os destroem com as solas das suas botas. Eu lamento, mas nossa amizade termina aqui.

Ele olha inebriado. E tem ímpetos de beijá-la à força. Nunca antes havia sido assim tão fisgado por uma mulher. Mas, nada fez. Foi invadido por um sentimento de vergonha.  Lembrou-se de quantas moças já enganara. Quantas reputações destruídas por seu egoísmo de macho. O que antes lhe parecia vantagem, agora era motivo de constrangimento.

- Eu aprendi a dizer não. O jardim é tudo que tenho. Não o entregarei a um jardineiro qualquer.  E assim, saiu. Sem dizer mais nada.

Ela se aproximou das amigas e ali se tornou comum, rindo alto e gostosamente dos chistes que lhe contavam. O baile seguia sem ela. E ela não precisava do baile. Outros homens se aproximaram e se afastaram. Elas dispensaram todos. Juntas, formaram um elo de proteção mútua que não permitia entrada de predadores. A cada convite, elas perguntavam-se a si mesmas:

Você quer mesmo dançar essa valsa, ou apenas acha que tem que aceitar o convite?


* Essa amante não consta na biografia de Chopin, mas me ocorreu enquanto escrevia. Sendo Chopin tão romântico, poderia ter mesmo uma amante secreta. Quem sabe proibida ou quem sabe um amor idealizado e impossível. Curiosamente, o nome que me veio a mente foi Elise, que foi musa de outro compositor - Beethoven - (Pour Elise)

As imagens foram copiadas do Google Image. Não achei o autor da pintura do baile, mas o quadro se chama "Flora", de 1635 e representa a esposa de Rembrandt, Saskia, 

quinta-feira, 27 de agosto de 2020

Relicário - Uma interpretação simbólica livre

Era uma índia com colar...

Relicário - Eu tenho um chamego por essa canção do Nando Reis. Ficava imaginando o que ele queria dizer. Confesso que nunca entendi a letra na sua totalidade. Ela vai se descortinando e permite múltiplas interpretações. 

Um dia  uma terapeuta colocou essa música na minha sessão e se fixou em um verso: Atrás do filho vem o pai, o avô... para tratar da ancestralidade, que era o tema da nossa sessão naquele dia. Desde então, eu fiquei com essa música na cabeça. Ela trouxe uma leitura completamente nova e intrigante. 

O que você está dizendo....milhões de frases sem nenhuma cor...

Mas, será que as frases são soltas e desconexas como parecem ser? Será que cada verso tem um significado específico que não se relaciona aos outros? Será que os versos são como vitrais coloridos que o Nando foi extraindo do seu inconsciente e montando em seu Castelo à revelia da lógica? O que mais tem nesse colar indígena?

Um relicário imenso desse amor...

Depois de ouvir uma linda interpretação simbólica sobre a música "Cegos do Castelo", feita por uma professora, resolvi colocar no papel as minhas impressões sobre o relicário. 

Imagino um casal. Ele, viúvo repentinamente. Ela, abruptamente mudou-se para outra dimensão. 

Ele sente muita saudade. Ela tenta se comunicar e avisar que não está morta. Embora, tenha se esforçado para... 

Como no Feitiço de Áquila, eles têm um breve momento no crepúsculo - Que é quando se encontram e conseguem se ver em um mundo onírico, colorido pelo sol que entardece sobre as águas. O Sol - o calor dos vivos - As águas representando as emoções e o desconhecido. O Sol - ele. As águas - ela.

É uma índia com colar
A tarde linda que não quer se pôr
Dançam as ilhas sobre o mar

Ele está sonolento. Quem sabe em uma rede. Quem sabe em um barco. O calor e o balançar das ondas o inebriam e o levam a um estado de transe. Ele entra em contato com aquela dimensão onde sua amada ainda vive. Ele a vê, enrolada nas nuvens e nas cores do entardecer. Ele fica estupefato. E confuso, tenta um contato. E fala uma bobagem qualquer, como uma criança que tenta fazer amizade com um coleguinha que admira muito...

Sua cartilha tem o A de que cor?

Entre dois mundos, sua consciência tenta trazê-lo de volta à realidade....mas, o que é real e o que é imaginário afinal? Por que no mundo dos sonhos tudo parece tão óbvio, mesmo que o relógio gire ao contrário? Mesmo que as frases não tenham sentido?

O que está acontecendo?
O mundo está ao contrário e ninguém reparou
O que está acontecendo?
Eu estava em paz quando você chegou

Havia uma brincadeira de criança que consistia em fazer algum tipo de promessa com um cílio entre os dedos dos envolvidos no certame. Ao separar os dedos, o cílio ficava com quem ganhava... ou perdia.. não lembro direito... Mas, eles fizeram alguma promessa com esses dois cílios em pleno ar.... Que promessa seria essa?

E são dois cílios em pleno ar...

Você me leva para esse lugar onde eu não consigo ir sozinho? Você volta para me ver amanhã? Me deixe um cílio e fique com o meu. Para guardarmos na memória quando a noite levar embora essa lembrança.

Atrás do filho vem o pai e o avô

Agora que estou aqui, entendo tudo. Somos filhos do nosso passado. E dele não podemos fugir. Nossos ancestrais viveram e morreram para que tivéssemos este momento no tempo.

Por que ela se foi? O que a tirou daqui de forma tão repentina? Uma bala? Um suicídio? O tiro volta a repercutir como se aquele momento ficasse retido no tempo. Repetindo, repetindo, repetindo...ecoando pelo céu...Espantando os pássaros que sobrevoam as águas profundas e frias do seu inconsciente.

Como um gatilho sem disparar
Que invade mais um lugar
Onde eu não vou

Eu não consigo ir aonde você vai. E o portal se fechou. Estamos separados por um véu. Aqui é sempre noite. É frio e escuro. As flores não nascem. Por mais que eu tente. Veja esses vasos... Só terra seca...

O que você está fazendo?
Milhões de vasos, nenhuma flor
Oh uô uô, o que você está fazendo?


A morte não mata a dor. E meu amor continua vivo. Sangrando e doendo. Cada vez mais. Cada vez maior...E vou guardando relíquias de memória nas conchinhas que cato nas tardes infinitas do meu mundo.

Um relicário imenso deste amor

O tempo passa. E como no Feitiço do velho bispo, nosso tempo se esvai. Já vai longe a noite. Logo você vai acordar e não vai se lembrar de mais nada...

Corre a lua porque longe vai?
Sobe o dia tão vertical
O horizonte anuncia com o seu vitral
Que eu trocaria a eternidade por esta noite

Eu não quero esquecer. Não quero que a noite passe. Não quero que o Sol nasça. Quero a noite eterna do seu olhar de índia. Quero curar a sua dor e cuidar do seu jardim.

Porque está amanhecendo?
Peço o contrario, ver o sol se pôr oh uô uô uô

Mas, o Sol continua a nascer, apesar dos meus esforços. Debalde os meus pedidos. Eu não vou lembrar de tudo. Mas, guardarei as cores da sua pele. E lembrarei de ti a cada pôr do Sol. Somente no sonho posso te tocar. Mas, não consigo te sentir. Por que você se foi? 

Porque está amanhecendo?
Se não vou beijar seus lábios quando você se for…

E se nossa alma for mesmo eterna? E se o amor que vivemos ontem virar semente para um novo encontro no futuro?

Quem nesse mundo faz o que há durar
Pura semente dura o futuro amor

De onde estou, me comunico pela natureza. Você me encontrará no som da chuva, no arco íris e no bater de asas de uma borboleta...

Eu sou a chuva pra você secar
Pelo zunido das suas asas você me falou

Mesmo que não entenda o que eu digo, por que o sonho subverte a lógica vigente, ainda assim estarei lá. E o que você não entende no nível da consciência, sua emoção traduzirá em poesia.

E o que você está dizendo?
Milhões de frases, nenhuma cor, ôô
O que você está dizendo? Uh huh
Um relicário imenso deste amor
O que você está dizendo?

O sonho se esvai. E o que parecia tão real e tão claro agora é obscuro e confuso. A índia, o colar, o Sol, as águas.. .tudo se embola em um redemoinho estranho... Eles se despedem. E o dia amanhece, implacável como a realidade.

O que você está fazendo?
Por que que está fazendo assim?
Está fazendo assim?
Está fazendo assim?
Está fazendo assim?

E o poeta volta a dormir. Pela manhã, se levanta. Sente uma dor imensa. Uma saudade indefinida. Compra um vaso. Planta uma flor. Cuida de um jardim. E segue a escrever poesias. Ele não quer mais dormir. De olhos abertos lhe esquenta o Sol....

Descanse em Paz, Índia. Nos vemos no crepúsculo.... Mas, se você quiser me olhar...se você quiser me achar... E se você vier de novo, eu vou cuidar de você, do seu jardim, do Céu, do Mar, de você e de mim....

OBS: O Nando Reis explicou o que ele sentiu quando escreveu essa música. Porém, como é uma obra de arte, ao ser entregue ao mundo não pertence mais ao autor. Ele mesmo concorda que o significado muda, transmuta, transforma-se, a depender do estado de quem lê. Essa é a interpretação que me ocorreu. Compartilhe suas impressões. Adoraria ler sua análise.

Aqui vai a explicação do autor: 


Namastê.

quinta-feira, 2 de julho de 2020

Arquétipos - A ciranda das deusas - Capítulo 4 - Ártemis

São tempos estranhos esses... As estações parecem estar fora da ordem...

Afrodite também foi convidada para o baile. Acordou cedo. Tomou seu banho de flores e passou horas escolhendo o vestido que usará à noite. Diverte-se tocando os tecidos e imaginando as possíveis combinações. Sapatos, bolsas, maquiagem, jóias, cabelos. Tudo perfeitamente harmonizado. Ela não tem dúvidas. Poderá usar qualquer cor, desde que seja vermelho. Equilibra-se graciosamente em seu salto mais alto. Elegante, leve e trigueira. Fatal e linda. 

- Como será que está o clima hoje? O mundo anda tão estranho que as estações parecem estar se atropelando. Era para já ser verão a essa altura. Então eu poderia colocar um vestido leve e esvoaçante. Mas, o tempo parece que vai virar. Ouço trovoadas. As árvores andam agitadas. Parece que vai chover. Sinto cheiro das folhas de outono...

Ela não tem pressa. Sabe que a qualquer hora que chegar vai ser bem vinda. Generosa e vaidosa, deixará que suas irmãs brilhem antes dela, pois quando chegar, sabe que todas as atenções serão suas. Abre um vinho. Está pronta.  Mas não sai de casa. Não ainda... Deixa sua impetuosa irmã passar na sua frente. Ela sempre foi ciumenta mesmo...

Enquanto isso,  segue o baile...

Um redemoinho de vento. Folhagens formam uma espiral infinita no jardim. De cima para baixo, as folhas vão desenhando uma silhueta. É uma mulher. Vestida de folhas. Tem um diadema em forma de Lua na cabeça. Traz um arco às suas costas, com uma aljava cheia de flechas de madeira.

Com um ar confiante e pés feitos de plantas trançadas, ela sorri. Olha a sua volta. Cumprimenta a todos com uma leve deferência. Apenas acena com a cabeça. Não se curva. Não baixa a guarda.

Muito prazer. Sou Ártemis.Venho das florestas ancestrais. Do tempo em que a humanidade honrava a natureza. Danço sobre o fogo, pulo os penhascos, luto como os lobos, os ursos me servem.

Para dançar comigo, tire seus sapatos. Sinta o crepitar das folhas secas do outono debaixo dos seus pés. Sangre-os nos espinhos, torne-os grossos nas pedras, galhos e troncos. 

Uma chuva muito fina começa a cair. Uma brisa perfumada e fresquinha percorre o jardim. Folhas amarelas e vermelhas formam um tapete suave e colorido. Um a um, pouco a pouco, os convidados vão se aproximando. A orquestra se ajeita para a próxima música. 


Uma senhora rechonchuda e sorridente, tanto quanto falante e espontânea, é a primeira a tirar os sapatos - Já não via a hora de me livrar desses saltos! Suja os pezinhos redondos na primeira poça d´água, mas não se intimida. As crianças, ainda suadas da ciranda de Perséfone, aproveitam a deixa para se sujarem mais um pouco. Algumas mulheres apenas observam divertidas. As meninas porém, por ainda não terem aprendido o que é vergonha, atiram-se ao baile.

Todos se divertem. A melodia envolve a floresta que circunda a casa do baile. Os corpos entram em sintonia com a música e a harmonia prevalece. As árvores parecem dançar com o vento ao som do violino. Pássaros passam em revoada em um balé lindíssimo. 

Ártemis coloca uma flor no cabelo de cada menina. Beija as mais velhas acena às jovens. Recolhe seu arco e se vai, flutuando sobre as folhas secas de um outono fora de hora. 

sábado, 15 de fevereiro de 2020

No fim da trilha escura

No fim da trilha escura 15/02/2020

Sentia que não tinha mais ânimo para escrever. Parecia perda de tempo.
Para quem? Por que? Sobre o quê? Não tinha mais motivação.

O mundo anda tão impaciente! Quem quer ler um monte de letras misturadas, quando é mais fácil ver o último viral no YouTube? Como conseguir leitores em um mundo dominado por imagens?

Ler cansa. Mas, é também um bom exercício. Ao ler, nossa mente constrói imagens e isso requer muitos neurônios. 

Imagino como eles se divertem quando são chamados a cooperar com o entendimento de uma cena. Como crianças, saem a transmitir sinais elétricos que viajam loucamente, desenhando figuras em nosso painel mental.

E por falar e viagem....

Uma mulher, entra em um quarto muito escuro. Dá um passo de cada vez. O chão é de madeira e faz ruídos estranhos. Ela tem medo. Não vê nada adiante, não sabe o que tem lá.

Perdeu a noção de espaço e de tempo. Não sabe onde está nem sabe como voltar. A porta se fechou. 

Sente os batimentos na garganta. Preciso sair daqui - pensa ela.
Mas, como? Sequer sei onde estou.

Por que abri essa porta? Pergunta-se, desorientada. Onde eu estava antes? Já não se lembra mais.

Ela segue. Passo a passo. Tateando em busca de paredes. Não há paredes. Só o chão que estala sob seus pés. Está frio, mas o ar é pesado. A escuridão é tão espessa que ela não consegue discernir nem mesmo sombras. Não há luz. Não há saída.

Não há ruídos, além do estalar dos tacos. Tacos? Onde já vi isso? Sua mente então dispara uma lembrança. É de uma casa. Escura e fria, com piso feitos de tacos de madeira. Ela é criança e está só nesta casa. 

Onde ficava mesmo a porta? Só há uma saída. Ela precisa achar o caminho de volta. Seria a mesma casa? E se não for?

Ela decide arriscar. Não vai ficar aqui esperando. Uma nova lembrança...João e Maria na floresta....Mas, os passarinhos comeram todo o pão..... A lenda do Minotauro...ah, se eu tivesse um novelo de lã... Para que servem as lendas, afinal?

Ela busca fundo na memória, pois já entendeu que seu cérebro está trabalhando duramente em busca de uma solução.  Ela imagina uma grande caixa de ferramentas aberta em sua tela mental. Está tudo muito bagunçado.  Ela se pergunta por que não organizou isso antes...

Enfim, essas ferramentas são tudo o que tenho. Qual delas vou usar? Não há luz aqui fora, mas, será que eu encontro uma lamparina?

Enquanto pensa, está parada. De que adianta andar, se não sabe onde está, nem para onde ir. 

Ela acalma sua mente.  Procura sentir os cheiros, ouvir os sons, perceber a temperatura... um calafrio lhe perpassa. Como se um vento frio e fugaz, ou como se alguém passasse rapidamente por ali. Há mais alguém aqui?
Apura os ouvidos. Parece ouvir o farfalhar de folhas....É o vento?

Não é mais a casa? Como foi que eu saí de lá, se nem me  mexi?

Agora é uma floresta. O som da madeira é substituído pelo som de folhas secas. Folhas secas. Ela gosta desse som, pois lhe faz lembrar de trilhas na mata, que gostava de fazer à luz do dia. Agora está muito bem. Posso andar por horas...

Mas... é noite. Fria e escura. Há animais à espreita. A trilha é demarcada? Como saber? Ela volta a andar e percebe que está subindo, pois sente que está se esforçando mais a cada passo. Subir é bom.... aumenta a perspectiva. Em breve verei a Lua ou as estrelas. Preciso de luz. É só do que preciso.

Arfante,  se apega a essa esperança. Chegar ao topo da montanha. Quem sabe lá haverá uma casa? E água? Tem sede e frio. Mas, não tem mais medo. A floresta lhe acolhe e protege.

A montanha parece infinita. O ar começa a faltar. Já não anda, engatinha. Se apega às pedras. Suas unhas sangram. Seus pés doem. Ela insiste. Não vai voltar atrás. Não quer a prisão da casa e não há de morrer no vale.

Vamos subir essa montanha, ou morreremos tentando. Morrer não é uma opção... mais quem sabe se eu dormir um pouco? Quem sabe o dia amanhece?

Enrolada no próprio vestido, ela dorme num cantinho. É um tronco. Se há perigos, não tem como se saber. Ao que parece, os bichos lhe dão uma trégua. Ou até a protegem... Pobre humana... Não sabe onde está se metendo....

Ela dorme por mil anos. Ou duas horas. Jamais saberá. Aqui não há tempo. A floresta continua lá. Espessa, escura e fria. Ela levanta, sacode a roupa e anda.

Uma luz pálida parece surgir. Não é mais montanha. É um platô. Uma trilha bem definida se abre à sua frente. Ela corre. Arrasta o corpo dolorido e magro. A luz parece piscar. Ora some, ora tremula no horizonte. É a Esperança. Sabemos que ela está lá, mesmo quando os olhos não podem vê-la.

Alcança a casinha. Ela se ilumina. A casa? Não! A menina! Olha para si e estranha. Não é mais uma mulher. Mas, uma garotinha. Com seu vestido de flores e um laço no cabelo. Ela bate à porta, desconfiada.

Uma senhora de bochechas rosadas e sorriso bondoso abre a porta. A casa é clara e muito ampla. Há uma enorme mesa de madeira. A senhora tem os cabelos grisalhos presos em um coque. Tem um vestido comprido e um avental gasto. A mesa está metade ocupada com farinha. Um rolo denuncia que alguém está preparando massa... na outra metade da mesa há cucas frescas. De uva e de maçã. A menina sente fome.

A senhora acolhe a menina e lhe põe um casaquinho. Pergunta quem ela é e de onde veio. A guria não diz nada. Ainda está confusa. Não sabe quem é nem como chegou aqui. Não entende como driblou o espaço e o tempo. Ela só sabe que andou, andou, andou....Até que chegou.

A vovó muito bondosa, porém rigorosa comanda a menina ao banho. Você está muito sujinha, minha filha. Não pode se sentar à mesa assim! Logo os outros vão chegar. Vá já se lavar!

Mas, não tenho roupas. Balbucia a garota. Tem sim! Responde a mulher. Suas roupas esperam por você no banheiro. Lá tem tudo o que você precisa. 

O banheiro, muito limpo, parecia coisa de filme. Uma banheira. Água quentinha. Toalhas felpudas com nomes bordados à mão! Tinha uma com seu nome! Como isso é possível? E roupas? Dão certinho em mim! Admirou-se a menina.

Após um demorado banho, afinal, nunca tinha visto tanto cuidado, a mocinha estava pronta. Arrumou seus cabelos em um rabo de cavalo com a fita azul que combinava com seu novo vestido. Colocou meias de algodão que pareciam proteger suas feridas. Calçou seus sapatos. Davam certinho no pé!

Ao chegar, todos estavam ao redor da mesa, conversando alegremente. Era uma família grande. Todos tinha o rosto rosado. Seu lugar estava reservado e ela se sentou. Todos falavam com ela com muita familiaridade. Curiosos, queriam saber de tudo. Ela ia respondendo em monossílabos.  Por que não tinha respostas.

A avó oferece um prato quente. É uma massa com molho de tomate. Tudo feito aqui! 

- Está uma delícia! Responde a mocinha.

Fim da noite. Ela se oferece para ajudar na limpeza. São muitos pratos. Todos ajudam. Em minutos, não há mais nada a fazer e todos podem ir dormir.

Ela tem medo. E se eu acordar naquele lugar horrível de novo? E se não achar o caminho de volta dessa vez?

A avó lhe consola. No meio de um abraço apertado e aconchegante ela diz: lembre-se da caixa de ferramentas. Foi mexendo nela que você encontrou a luz que te guiou até aqui.

Você tem luz. E tem família. Você tem quem olha por si. Enquanto houver luz, haverá esperança. Confie na luz, mesmo sob trevas densas. Após uma longa jornada haverá descanso. Eu estarei aqui para acolher você, sempre que precisar. 

A menina dormiu. E acordou mulher. Em sua casa. Como seus boletos para pagar e seus problemas para resolver. 

Que sonho louco! Ela se levantou sem lembrar direito dos detalhes. Mas, como uma vontade enorme de cozinhar.  🤗😊

...

Se chegou até aqui, muito obrigada por sua leitura

Conte nos comentários como imaginou a cenas? Como era a avó, a menina e a mulher na sua imaginação? 

terça-feira, 21 de janeiro de 2020

Intuição

Intuição: Faculdade ou ato de perceber, discernir ou pressentir coisas, independentemente de raciocínio ou de análise.... (dicionário do google)

Houve um tempo em que todas as mulheres tinham a "visão". Ela vinha em sonhos ou em pressentimentos. Aparecia em momentos de transe enquanto fiavam suas mantas ou quando mexiam seus tachos. Tempos que desapareceram nas brumas do esquecimento.

Foi antes da ansiedade gerar a paranóia. Filha e mãe de toda essa bagunça.

A intuição, ou a antiga "visão" virou maluquice. Coisa de mãe velha ou de bicho-grilo. Envergonhada, ela se recolheu. Mas, de vez em quando ela timidamente tenta se comunicar. É aquela acelerada no coração quando a gente se depara com uma boa ideia ou uma grande oportunidade. É aquele brilho no olho e imediata conexão quando encontramos uma alma irmã. É aquele aperto no peito....aquele isso-não-está-me-cheirando-bem...

Você já entrou em um ambiente e sentiu um peso no ar? Como se houvesse uma hostilidade sutil dissolvida na atmosfera? Já olhou para um sorriso e enxergou uma máscara da maldade? Já sentiu que alguma coisa errada não estava certa?

Por outro lado, já conheceu alguém e desde a primeira vez sentiu uma conexão inexplicável? Já recebeu um abraço espontâneo de uma criança que nunca havia visto antes? Ou já fez uma criança abrir o berreiro só de olhar para ela? Sim. Elas têm intuição.... Elas viram algo que você ainda não enxergou.

O que sua intuição está lhe dizendo hoje?