quinta-feira, 24 de outubro de 2019

Em cima do muro mestiço

Minha cor? Não sei....

"Já me disseram que eu sou branco demais pra ser preto. Já me disseram que eu sou preto demais pra ser branco" (PROJOTA)

Os detectores de melanina sempre funcionam para mim.... aeroporto, banco...shopping de luxo.

Impressão? Mania de perseguição? "mimimi"?... Não é nada disso... Se você nunca passou por esses sutis constrangimentos, você nunca vai entender....

Eu tenho o sangue galego de íbericos ancestrais. Sangue Celta corre em minhas veias, de bruxas e magos de um tempo imemorial que cruzaram o oceano levando seus costumes para Portugal.

Eu tenho sangue preto de negros valentes. Daqueles que corriam descalços vestidos de palha. Fortes e orgulhosos. Guerreiros. Homens e mulheres de extraordinária força física e mental. Sangue que suportou a violência do exílio, do cativeiro e do trabalho forçado.

Aqueles,  escravizaram estes. Em minhas veias, corre um sangue contraditório. Corre o ódio e a arrogância. Corre a resignação e a revolta. Corre o banzo e a saudade.

Tenho no DNA as marcas do chicote. Mas, também, os calos de quem o carregou por tantos anos. Tenho na mão direita ainda a chibata que fere minhas próprias espaldas.

Uma inclinação inata pelas artes, pelos pratos e talheres. Pela fina culinária.
Um amor visceral por correr pelo mato, abraçar as árvores e falar com os animais.
O conhecimento natural do uso das ervas.
A conexão com as energias cósmicas.

Está tudo aqui. No mesmo caldeirão.

Mas, o que sou? Branca? Negra? Indígena? - Uma. E também outra....

Nessa mistura de cores, não dá para ser racista. Nem para um lado, nem para o outro.

Somos elos. Conexões. Viemos para dar as mãos. De um lado e de outro. Viemos para reconciliar. Patrão e empregado. Proprietário e colono. Coronel e escravo. Homem e mulher. Senhora e mucama. Sinhazinha e cunhã....

O brasileiro é uma criação divina para prover o perdão.

Perdão pelas chibatadas...Perdão pelo rancor produzido por elas.
Perdão pelos maus tratos...Perdão pelo ódio que esses maus tratos geraram...

A mistura reconcilia os povos. Casa marabás com mamelucos. Une mouros e ibéricos. Aplaina os orgulhos e suaviza as opiniões.

Somos um país de mestiços! Agora, vamos largar de brigas tolas e fazer uma grande festa, unindo nossas cores, costumes e crenças.

Daqui de cima do muro vislumbro o país mais belo do mundo!


Marabá - Gonçalves Dias

Eu vivo sozinha; ninguém me procura!
Acaso feitura
Não sou de Tupá?
Se algum dentre os homens de mim não se esconde,
— Tu és, me responde,
— Tu és Marabá!

— Meus olhos são garços, são cor das safiras,
— Têm luz das estrelas, têm meigo brilhar;
— Imitam as nuvens de um céu anilado,
— As cores imitam das vagas do mar!

Se algum dos guerreiros não foge a meus passos:
"Teus olhos são garços,
Responde anojado; "mas és Marabá:
"Quero antes uns olhos bem pretos, luzentes,
"Uns olhos fulgentes,
"Bem pretos, retintos, não cor d'anajá!"

— É alvo meu rosto da alvura dos lírios,
— Da cor das areias batidas do mar;
— As aves mais brancas, as conchas mais puras
— Não têm mais alvura, não têm mais brilhar.

Se ainda me escuta meus agros delírios:
"És alva de lírios",
Sorrindo responde; "mas és Marabá:
"Quero antes um rosto de jambo corado,
"Um rosto crestado
"Do sol do deserto, não flor de cajá."

— Meu colo de leve se encurva engraçado,
— Como hástea pendente do cáctus em flor;
— Mimosa, indolente, resvalo no prado,
— Como um soluçado suspiro de amor! —

"Eu amo a estatura flexível, ligeira,
"Qual duma palmeira,
Então me responde; "tu és Marabá:
"Quero antes o colo da ema orgulhosa,
"Que pisa vaidosa,
"Que as flóreas campinas governa, onde está."

— Meus loiros cabelos em ondas se anelam,
— O oiro mais puro não tem seu fulgor;
— As brisas nos bosques de os ver se enamoram,
— De os ver tão formosos como um beija-flor!

Mas eles respondem: "Teus longos cabelos,
"São loiros, são belos,
"Mas são anelados; tu és Marabá:
"Quero antes cabelos, bem lisos, corridos,
"Cabelos compridos,
"Não cor d'oiro fino, nem cor d'anajá."

E as doces palavras que eu tinha cá dentro
A quem nas direi?
O ramo d'acácia na fronte de um homem
Jamais cingirei:

Jamais um guerreiro da minha arazóia
Me desprenderá:
Eu vivo sozinha, chorando mesquinha,
Que sou Marabá!