Sua irmã maior é bonita, popular e fútil. Procura um marido. Vive cercada de amigas igualmente leves e vazias. Tem um roteiro a seguir. Ir aos bailes. Ver e ser vista. Ser escolhida por um jovem rico e atraente. Casar-se, engordar e ter filhos. Como sua mãe.
Ela é a caçula. Beleza discreta e pouca pompa. Os vestidos mais vistosos são da sua irmã. Ela se veste com decoro e simplicidade. Prefere os livros às aulas de dança. Mesmo assim, sua postura e aura de nobre fazem com que os tules e os cetins ganhem um brilho especial. Ela não passa despercebida.
O baile começa. Os músicos tocam valsas. Viena é uma cidade festiva. Servem bebidas e comidas em abundância. Ela nada prova. Quieta, mas segura de si, apenas se faz presente.
Sua irmã e seu séquito de abelhas desfilam pelo salão, atraindo olhares curiosos e cheios de cobiça. Ela, passa incólume e aproveita sua invisibilidade para observar.
Um distinto cavalheiro se aproxima. Ela o nota pela visão periférica. É mais velho, porém bem apessoado.
- Boa noite, jovem dama. Posso aproximar-me de sua senhoria.
- Pois não. Boa noite.
Ela responde educada e reservadamente. Sente seu corpo encolher, como quem se esconde. O pelo da nuca se eriça, como quem fareja o perigo. Ela está em alerta. Não confia em ninguém. Muito menos em homens...
Ele percebe que a moça é arredia e resolve ir devagar na abordagem. Para impressionar a moça, ele fala da luz e das sombras dos quadros de Rembrandt e recebe dela uma aula de história da arte.
Ele fala de Chopin, que alguém toca ao piano no fundo do salão, e ela descreve com delicadeza o amor escondido do pianista por uma certa "Elise"* que, segundo ela, permanece escondida dos livros de história, pois madame Sand jamais deixaria que descobrissem essa indiscrição...
O baile segue alegre. As notas parecem tomar formas tridimensionais e se misturar aos vestidos que giram no salão. Os risos, as cores e o frescor da juventude deliciam a moça, que prefere observar a viver aquela ilusão.
Deliciado com o mexerico e intrigado, o homem se perguntava como uma moça poderia ser tão letrada e ao mesmo tempo tão divertida. Que jovem inteligente. Quanta cultura em um corpo tão frágil. Não é como as outras. Não será tão fácil seduzi-la.
Enquanto ele a ouve descrever como aprendeu cultura clássica, diante de uma escultura de Ártemis, à entrada do salão, um jovem duque se aproxima. Ela nota seus olhos já vermelhos de vinho. Ele a convida para dançar. Ela agradece e diz não. O jovem, desconcertado perante tão gentil recusa, sai em busca de outro alvo. O homem, observando a atitude da moça a questiona:
- A moça não gosta de dançar? Ou... talvez não saiba...
Ela responde: - Ah, sim. Gosto muito de dançar. Mas, a conversa está tão agradável que não quero perder o momento. Ademais, aquele jovem está bêbado. E o álcool desperta excessiva ousadia.
Inebriado pelo que ele entendeu como elogio à sua pessoa, ele se sente à vontade para se aproximar. E lhe oferece uma taça de vinho. Quem sabe despertaria a mulher escondida sob aquele discreto vestido. Ele sentia a vida que pulsava naquele corpo jovem, mas percebia que ela mantinha seu desejo muito bem guardado. Seria virgem? Provavelmente. E caberia a ele, sagaz e experiente, descobrir...
Mas, ela disse não....
- Eu não bebo em festas. Prefiro guardar o juízo enquanto tenho controle sobre ele.
Ele então, a convida para a próxima valsa. E ao tocar sua cintura e sentir seu cheiro de jasmim se imagina no céu. É uma musa. Uma ninfa. Uma deusa. Ela dança com leveza. Flutua pelo salão. Tão linda, tão alegre e tão leve que chega a ofuscar a irmã, que gira majestosamente em seu cetim dourado.
Ele se encanta com a moça. Mas, ela permanece firme em seu espaço. E não dá ocasião para suas investidas.
Ele apela então para o velho golpe do passeio no jardim.
- Está calor aqui. Vamos passear no jardim?
- Meu caro.... pelo que me tomas? Não estrague esse belo momento. A propósito, sinto que nossa conversa deve terminar aqui. Vejo ali algumas amigas. Vou até lá, conversar sobre coisas fúteis e voltar ao meu mundo de donzela. A conversa estava boa, e o senhor me parecia inteligente. Mas, vejo que se utiliza dos mesmos ardis que todos os outros.
- Vejo que a senhorita não é como as outras. Ninguém jamais recusou um convite meu para um passeio no jardim. Será uma inocente caminhada entre as flores, lhe prometo.
- Ao contrário, meu senhor. Sou exatamente como todas. Apenas aprendi que não preciso seguir o roteiro que vossas senhorias, homens, desenharam.
- Quando uma moça aceita ir ao jardim, é porque entende que causou este convite. Logo, se vê obrigada a aceitar. Algumas vezes, nada acontecerá além de uma tímida conversa à luz da Lua. Mas, quem não viu julgará que houve algo mais. E a moça acaba presa. Capturada pelo predador. Acredita-se livre para fugir, mas sem forças para escapar. Está presa das línguas maldizentes que se enroscam no seu corpo, que não é mais seu.
Outras vezes elas deixam lá no jardim a sua dignidade. E eles se vão, deixando-nos abandonadas, desprezadas, tristes e indignas. Para que, meu senhor? Para que colher as uvas e depois pisá-las na lama? Para que colher flores só para vê-las murchar? Dizem a amar os jardins, mas os destroem com as solas das suas botas. Eu lamento, mas nossa amizade termina aqui.
Ele olha inebriado. E tem ímpetos de beijá-la à força. Nunca antes havia sido assim tão fisgado por uma mulher. Mas, nada fez. Foi invadido por um sentimento de vergonha. Lembrou-se de quantas moças já enganara. Quantas reputações destruídas por seu egoísmo de macho. O que antes lhe parecia vantagem, agora era motivo de constrangimento.
- Eu aprendi a dizer não. O jardim é tudo que tenho. Não o entregarei a um jardineiro qualquer. E assim, saiu. Sem dizer mais nada.
Ela se aproximou das amigas e ali se tornou comum, rindo alto e gostosamente dos chistes que lhe contavam. O baile seguia sem ela. E ela não precisava do baile. Outros homens se aproximaram e se afastaram. Elas dispensaram todos. Juntas, formaram um elo de proteção mútua que não permitia entrada de predadores. A cada convite, elas perguntavam-se a si mesmas:
Você quer mesmo dançar essa valsa, ou apenas acha que tem que aceitar o convite?